Ipameri e o Século 20

O talento empresarial de Elias Miguel não foi algo isolado ou casual em Ipameri.

As fotos sobrepostas à imagem do Google Maps são dos anos 1950. Na primeira, o quartel aparece em primeiro plano e o campo visual cobre quase toda a área urbanizada da cidade; as ruas que cortam a foto horizontalmente a são paralelas à linha férrea.

As aerofotos mostram a mesma região, na época e agora. O quartel está coberto pelas manchas em vermelho. Ele é o referencial urbano mais importante da cidade pelo porte e porque sua influência foi múlipla e profunda:

  • já na construção, feita pela importante Companhia Construtora de Santos, trouxe métodos construtivos e especialização profissional até então desconhecidas em Goiás;
  • está no cume de uma encosta, valorizada pelo ambicioso plano urbanístico de Vicente Marot que traçou um conjunto de vias amplas e bem traçadas a partir daí;
  • a constante renocação de recrutas e oficiais arejou, ampliou e diversificou os contatos sociais; a linha de tiro, uma instalação de treinamento militar, desempenhou também o papel de clube, cedendo suas dependências para atividades esportivas e recreativas;
  • a linha de tiro, uma instalação de treinamento militar, desempenhou também o papel de clube, cedendo suas dependências para atividades esportivas e recreativas;
  • constituiu o apoio logístico para as rotas pioneiras que entraram em Goiás na implantação e operação do Correio Aéreo Militar, ;
  • difusão novas idéias políticas, derivadas do movimento tenentista e sustentadas pelos jovens oficiais da época.

O talento empresarial de Elias Miguel Daher não foi um fato isolado ou casual em Ipameri: a primeira metade do século 20 foi pródiga com a cidade neste aspecto. Joaquim Rosa, o brilhante memorialista da região nesse período, ajuda a entender o que se passou.

Na passagem do século 19 para o 20, o Rio era rico por ser a capital do Brasil e ter seu porto; São Paulo por ter o café e o porto de Santos. Levas de imigrantes chegavam por causa de guerras e crises econômicas na Europa e no Oriente. A estrada de ferro era o transporte mais importante e Minas Gerais se beneficiava disso por estar ligado às duas metrópoles.

Em Goiás, a capital Vila Boa mantinha o poder político e administrativo, mas não tinha importância econômica e a vasta região do sudeste goiano era de fato ligada ao Triângulo Mineiro através de Araguari. A Estrada de Ferro Mogiana chegava até esta cidade, e daí em dainte compras e vendas se transportavam em tropas e carros de bois. Eram mineiros os capitalistas que emprestavam dinheiro aos produtores goianos e intermediavam os negócios com Rio e São Paulo; e mineiros também os que vinham para Goiás com conhecimentos sobre novos negócios e ambições de enriquecimento.

As primeiras locomotivas que circularam no ramal entre Araguari e o sudeste goiano.

Uma das máquinas pioneiras que trabalharam na abertura de estradas que ligaram os municípios vizinhos à ferrovia.

Tudo isso se modificou quando um ramal da ferrovia chegou a Ipameri em 1913 e depois cruzou o Rio Corumbá em 1922. Rapidamente se formou uma rudimentar rede rodoviária, aproveitando a incipiehte penetração da americana Ford, com os versáteis Ford Bigode, os tratores Fordyson e os resistentes caminhões. Neste processo de expansão dos transportes, Vitorino Bevinhati, um italiano anteriormente radicado em São Paulo, veio a ser fundamental; mais tarde, ele seria ainda um semeador de indústrias no beneficialmento de arroz, na charqueada e na Fábrica de Calçados Santa Cecília, além de atuar na construção civil.

Também em 1913, coincidentemente com a chegada da ferovia, um mineiro já estabelecido em Ipameri, Aristides Rodrigues Lopes, inaugurou uma pequena geradora de energia enérgia, iniciando um processo que se ampliaria com três usinas e levando à constituição da ELFI - Empresa de Luz e Força de Ipameri e completando o binômio transporte e energia na cidade. Ele disseminou inovações, que incluíram o cinema e o uso da bicicleta e teve a colaboralçai fértil dos filhos - Virgínio como farmacêutico, Edison como construtor das usinas e Francisco como administrador da ELFI - e de dois genros: o multiempreendedor Vicente Marot e o politécnico Waldemar Leone Ceva.

Turbinas a caminho da usina do Rio do Braço, a terceira da série iniciada por Aristides Lopes, mas na ocasião ele já morrera. A foto foi feita em frente à casa de Edison, seu filho construtor das usinas, e é uma referência aos dois pioneiros de Ipameri: Aristides, idealizador das usinas, e Vitorino Bevinhati, empreiteiro da Catedral, que aparece ao fundo.

A Praça da Liberdade, obra conjunta de Vicente Marot e Waldemar Leone Ceva nos anos 1920, conservou durante décadas seu projeto pasisagístico. O primoroso coreto permanece lá.

Bevinhati e Aristides foram pioneiros, pois criaram condições para o trabalho dos que viriam depois deles; na ferrovia, alguns vagões carregava mercadorias e outros trouxeram um surto migratório com grande participação de mineiros e estrangeriros que multiplicaram os negócios. Muitos deles traziam experiência no comércio e indústria, assim como fortes relacionamentos nos mercados do Triângulo Mineiro, Rio e São Paulo. Assim, puderam acumular capital e romper a dependência dos banqueiros e intermediários, ganhando ao mesmo tempo a parceria dos produtores locais. E a oferta de crédito pelo Banco do Brasil a partir de 1922 completou a reestruturação do finaciamento da produção.

Como resultado, os tradicionais proprietários rurais de Ipameri, comprometidos economicamente com os capitalistas mineiros e carentes do dinamismo dos novos moradores, foram superados na liderança pelos empreendedores urbanos. Isto se vê na relação de intendentes e prefeitos municipais da época.

O personagem mais representativo dessa mudança foi Vicente Marot. Italiano, procedente de Jaú/SP, chegou a Ipameri como administrador da estrada de ferro, estabeleceu-se como fazendeiro, foi representante e sócio de instituições financeiras. Intendente municipal entre 1919 e 1923, quando remodelou o traçado urbano e renovou a cidade, foi quem viabilizou financeiramente a transferência do quartel do 6º Batalhão de Caçadores, antes sediado na capital do Estado.

O mandato de Marot também foi emblemático por coincidir com datas marcantes: a conclusão da ponte sobre o Corumbá, a inauguração da agência do Banco do Brasil, e a abertura da rodovia Ipameri-Paracatu, comandada por Vitorino Bevinhati. Assim, entre 1913 e 1923, a economia e a sociedade do sudeste goiano reorganizaram-se completamente em porte e estrutura, tendo Ipameri despontado como autêntica capital regional.

A sede inicial do Ginásio Municipal, que começou a funcionar em 1932 no Largo do Rosário. O sobrado que aparece à esquerda na foto era um internato para os alunos de outras cidades.

O casarão numa esquina da Praça da Liberdade ocupado inicialmente pelo educandário e internato feminino que iniciou as atividades em em 1936.

Na década de 1930, o destaque foi a implantação de duas escolas estruturadas segundo as normas oficiais. Até então, a escolarização se fazia nas salas dos mestres-escolas locais ou em estabelecimentos de outras cidades, frequentemente seminários ou conventos; o crescimento populacional levou à instalação sucessiva do Ginásio Sírio Brasileiro e do Educandário N. S. Aparecida. O primeiro tinha como motivador principal o apreço pelo ensino nas famílias estrangeiras, o outro respondia a uma tradição da Igreja Católica.

A construção civil, além de se beneficiar da construção do quartel, foi influenciada pela presença de construtores europeus que transmitiram seu conhecimento e habilidade aos ipamerinos. Introduziram refinamento técnico, inovações estéticas, uso de novos materiais, especialização profissional e renovou o vocabulário arquitetônico, especialmente nas fachadas. Divulgaram o uso do tijolo cerâmico, das telhas francesas, das venezianas nas janelas e das fachadas decoradas com baixos relevos ou revestidas com massa raspada. Waldemar Leone Ceva, um técnico polivalente trazido a serviço da estrada de ferro, introduziu o concreto armado. A variedade de materiais denuncia o vigor das trocas mercantis, pois não havia produtores locais ou mesmo nacionais de cerâmicas, ladrilhos, ferro, cimento e acabamentos. É notório que o estilo chamado Art Déco estava presente em Ipameri mesmo antes de sua disseminação na construção de Goiânia.

A organização das empresas foi outro aspecto que teve Aristides Lopes e Vitorino Bevinhati como modelos distintos. O primeiro seguiu a forma tradicional de sociedades compostas a partir de vínculos familiares, o que também era típico dos árabes; Bevinhati, por seu lado, foi um semeador de negócios associando-se a parceiros que tivessem experiência no ramo em questão e desligando-se quando se voltava para outros objetivos.

Uma inovação empresarial surgiu quando Antonio Raimundo Gomes da Frota fez da prestação de serviços médicos, antes limitada aos consultórios, um negócio corporativo: inicialmente a precursora Clínica Santa Terezinha, e depois a Clínica Frota, à medida que os filhos também se tornaram médicos. Cearense formado em medicina na Bahia, trouxe o primeiro raio-X para o centro-oeste e foi um experimentador do transporte aéreo de passageiros em emergências.

Construção em dois pavimentos em alvenaria, dotada de telhas cerâmicas, platibanda, venezianas, balcão e baixos relevos; indicativa das novas técnicas, materiais, padrões estéticos e salubridade trazidos por construtores e artesãos europeus.

Gomes da Frota foi prefeito num período em que o governo estadual passou a investir diretamente em outras cidades além da capital. O novo edifício da Prefeitura, obra grandiosa construída por Frota, já contou o aporte de recursos do Estado.

Como Vicente Marot, Frota também foi prefeito, exercendo o mandato entre 1937 e 1945 e cobrindo o período crítico da 2ª Guerra Mundial, com seus efeitos profundos na economia e na política. Em paralelo com os ganhos do Brasil no comércio internacional, Ipameri teve um surto de liquidez financeira causado pela supervalorização das jazidas da Serra dos Cristais (Cristalina), estratégicas para as telecomunicações; dada sua condição de liderança reagional, os investimentos em imóveis e negócios se dirigiram principalmente para Ipameri. Isto se extinguiu com o fim do conflito, mas a guerra deixou outro efeito secundário: a demonstração de eficiência da aviação. Ipameri, já com um novo aeroporto, recebeu os versáteis DC-3 comerciais e seus irmãos militares, os C-47 da FAB, e aconsolidou seu ativo aeroclube, reforçando as conexões com os parceiros regionais, como Paracatu e Araguari.

Sócios do aeroclube de Ipameri junto à bomba de combustível do aeroporto. Firmo Ribeiro, oriundo de Cristalina e um dos maiores entusiastas da aviação, faleceu num acidente aéreo às vesperas de se tornar candidato único à Prefeitura de Ipameri.

Agência Chevrolet e posto Esso, de propriedade de Firmo Ribeiro, também um entusiata da aviação; a concorrente Ford, cujos tratores e caminhões propiciaram a construção das primitivas estradas regionais também tinha sua agência na cidade, pertencente a Migual David Cosac.

Nos anos 1940 e 1950, a sociedade ipamerina adotou ares de refinamento emanados dos grandes centros urbanos: o Jóquei Clube, sua imponente sede social e seu movimentado hipódromo; uma intelectualidade composta por magistrados, advogados, oficiais do Exército, jornalistas e professores; músicos da banda militar e dos conjuntos que animavam festas e bailes, violonistas seresteiros e pianistas preparados por professores estrangeiros ou pelas mestras vindas com o colégio das religiosas. Tinha até mesmo sua "colônia radiofônica" polarizada pelos programas de estúdio e auditório da Rádio Xavantes: eram locutores, cantores, músicos, atores, narradores, programadores musicais etc. E o comércio respondia às novas demandas oferendo bens sofisticados e caros, como veículos.

Um dos reflexos visíveis da vitalidade econômica foi a reconstrução urbana, que progressivamente trocou a taipa e o adobe pela cerâmica e o cimento. A igreja principal saiu do Largo do Rosário para a Praça da Liberdade e de lá para uma nova praça, vizinha ao quartel; esse mesmo caminho foi trilhado pelo educandário religioso, desalojando o cemitério que foi transferido para os arredores da cidade. O ginásio municipal também subiu a ladeira e se instalou nas imediações do quartel. O Banco do Brasil teve três sedes sucessivas e a Prefeitura, duas.

A partir dos anos 1960, o Brasil conheceu transformações geoconômicas, tecnológicas, sociais e político-administrativa que mudaram radicalmente o quadro anterior. Goiás foi um dos estados que mais sentiram esse processo, até porque um dos fatores principais foi a mudança da capital federal para seu território. Houve intensa redistribuição da população, dos investimentos públicos e privados, das rotas comerciais e dos modos de transporte.

A Praça da Liberdade e arredores nos anos 1970. com seu coreto no centro. No canto superior esquerdo a Catedral, e no canto inferior direito a Clínica Frota, já reformada e ampliada.

Ipameri é um caso excepcional de conjugação dos fatores propícios ao desenvolvimento na época:

  • terras férteis abundantes e baratas
  • transporte e energia, a infraestrutura essencial
  • crescimento do mercado exportador e do consumo nos grandes centros brasileiros
  • mecanismos eficientes de financiamento da produção e comercialização
  • mão-de-obra capacitada
  • e o mais importante: espírito empreendedor e inovador de seus cidadãos, aptos a deflagrar e conduzir esse processo.

A cidade ostenta expressivos marcos arquitetônicos, urbanísticos e culturais dessa história:

  • o quartel, em posição geográfica privilegiada e carregado de significados, hoje sede de uma Companhia de Engenharia do Exército;
  • a igreja do Divino Espírito Santo, construção grandiosa no estilo românico da alta arquitetura medieval, convertida em catedral;
  • a pequena igreja ortodoxa de São João Batista, de arquitetura e ritos peculiares, cuja resiliência lembra o poder da vontade dos cidadãos.

Foto de Jair Jr